Está estabelecido no Novo Código Civil que a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas ou jurídicas que a compõe. A pessoa jurídica possui autonomia para figurar em relações jurídicas, bem como patrimônio próprio distinto do patrimônio de seus sócios, de forma que, em regra, é o seu patrimônio, e não o de seus sócios, que responde pelas dívidas por si contraídas.
A Lei reconhece a pessoa jurídica como um importantíssimo instrumento para o exercício da atividade empresarial, sendo hoje em dia considerada como uma instituição, através da qual um agrupamento adquire uma personalidade distinta das de seus componentes.
Preserva por sua vez com tal determinante diminuir os riscos da atividade econômica da sociedade empresarial, de modo a incentivar a produção e incrementar o desenvolvimento econômico e social que a irradiam.
Da definição da sociedade empresária como pessoa jurídica derivam conseqüências precisas, relacionadas com a atribuição de direitos e obrigações ao sujeito de direito nela que se concentra.
Verifica-se que da personalização da sociedade empresária faz nascer o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos fundantes e determinantes do direito societário. Cria-se com essa diretriz um ente autônomo, com direitos e obrigações próprias, distintas da pessoa jurídica que o regem.
Assim temos, que na medida em que a lei estabelece a distinta separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando com tal particularidade o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das obrigações relacionadas ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas prestações.
E com base nesse princípio é que os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações adquiridas pela sociedade.
No entanto, a organização mercantil sob a forma de sociedade permite que seus sócios, imbuídos de má-fé, com o intuito de limitar indevidamente sua responsabilidade patrimonial, utilizem-se, em prejuízo de seus credores, do albergue criado pela separação entre a sua personalidade e a personalidade jurídica da sua sociedade.
Distorcendo totalmente a realidade pretendida com o princípio da autonomia que lhe fora conferido, as sociedades buscam como um escudo ínsito da personalidade jurídica que lhe deriva a persecução de atos contrários ao direito e a boa-fé.
Em sua grande maioria, as sociedades empresárias são utilizadas com instrumento para a realização de fraude contra credores ou mesmo abuso de direito, onde os atos perpetrados pelos sócios ou administradores são justificados em nome da sociedade, propiciando outros fins daqueles estabelecidos em seu objeto social.
Na medida em que a sociedade é o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas. Nesses casos, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa na impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Ou seja, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpretado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária.
Somente se revela a irregularidade se o juiz, no caso concreto, não respeitando o princípio referido, desconsiderá-lo. Nessa linha, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária.
Sensível a tais fatos e atendendo aos reclamos sociais que não podem tolerar a utilização do Direito para fins escusos, teve a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica seu berço nos Estados Unidos, sendo posteriormente divulgada pelos paises da Europa ate finalmente atingir o Brasil.
O primeiro texto de lei a prever expressamente a desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro foi o Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, em seu artigo 28.
Porem, o legislador ao presentear tal instituto não atentou-se aos aspectos materiais e processuais de sua repercussão, demonstrando que o artigo de lei não guarda, em sua totalidade, coerência com o dispositivo que objetiva disciplinar.
Embora estejam integradas sob o rótulo da desconsideração, as hipóteses ali previstas afastam-se do tema. Há apenas a preocupação com a responsabilidade das sociedades controladas, consorciadas e integrantes de grupo de empresas, sendo-lhes dada responsabilidade solidária ou subsidiária e reforçados os limites das coligadas.
Verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor apresentou a desconsideração de forma ampla, de tal modo que poderia abranger qualquer situação em que a autonomia da personalidade venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do consumidor prejudicado.
A desconsideração da personalidade jurídica, tal qual prevista na Lei 8.078/90, funcionaria em favor do consumidor lesado, atingindo todas as pessoas que, conjunta ou separadamente, praticaram o ato danoso que se pretende reparado.
Certamente a previsão legal significou um grande avanço para a Teoria da Desconsideração, bem como para a garantia dos direitos do consumidor. Todavia, apesar de louvável o intuito, laborou com impropriedade o legislador, cometendo erros ao regular tão complexa matéria.
Posteriormente ao Código de Defesa do Consumidor, outros dispositivos de lei exaltaram a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica como muita propriedade. Assim se substanciou com o artigo 18 da Lei Federal 8.884/94 (Lei Antitruste) e com o artigo 4º da Lei Federal 9.605/98, que dispõe sobre a responsabilidade por danos ao meio ambiente.
Também não poderíamos olvidar o significante avanço que tal Teoria percorreu até ser inserida ao Novo Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que mesmo não fazendo referência expressa a esse instituto, se traduziu por completo nos dizeres do artigo 50.
O Novo Código Civil passou a exigir, para a sua aplicação, o abuso de direito que, por sua vez, é caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
A teoria generalizou-se rapidamente na doutrina e na jurisprudência com base nos princípios de boa-fé, ordem pública e eqüidade. No seu desenvolvimento, dois requisitos essenciais foram estabelecidos para sua aplicação: fraude no uso da pessoa jurídica e abuso de direito.
Objetiva o instituto a desconsideração da personalidade jurídica atribuída pelo Direito a certos entes abstratos, a fim de que seja atingido, no caso concreto, o patrimônio de seus sócios administradores, que responderão pela fraude ou abuso de direito praticados através do mau uso do instrumento da pessoa jurídica.
Procurou o legislador adequar a disposição de lei aos ditames da Teoria da Desconsideração da Personalidade jurídica. Onde a norma não poderá ser interpretada afastada dos princípios fundantes da Teoria da Desconsideração, devendo ser utilizada para a coibição de fraudes ou abusos de direito.
Em outros moldes, a desconsideração da personalidade jurídica é o meio pelo qual se torna ineficaz a personificação societária, atribuindo-se ao sócio ou sociedade condutas que se não fossem a superação dos atributos da personalidade jurídica, seriam imputadas à sociedade ou ao sócio, respectivamente.
O juiz, ao analisar o caso concreto, e admitindo-se a Teoria da Desconsideração, pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial que regem entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica, haja vista que é necessário coibir a fraude perpetrada por aqueles que regem a sociedade.
Tal circunstancia não seria possível sem a aplicação de da premissa da desconsideração, onde haveria de ser respeitada as regras de autonomia da sociedade empresaria.
Ao contrario do que possa parecer, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não desfaz o ato constitutivo da sociedade, ou seja, não o invalida e tampouco importa na dissolução da mesma.
A aplicação da Teoria da Desconsideração não importa na conseqüente dissolução da sociedade, mas interage no caso específico, em que a autonomia patrimonial foi fraudulentamente utilizada, ela não é levada em consideração.
Trata-se apenas da suspensão momentânea desse ato, onde a constituição da pessoa jurídica não produz efeito apenas no caso concreto, permanece válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins de direito.
Essa característica revela-se como fundamental diferença entre a Teoria da Desconsideração e os demais instrumentos desenvolvidos pelo direito para a coibição de fraudes perseguidas através das pessoas jurídicas.
Em verdade, do mesmo jeito que se busca representar a defesa do próprio ordenamento jurídico, a Teoria da Desconsideração se mostra como um meio hábil de preservação da própria pessoa jurídica.
O real objetivo perseguido com esta teoria é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto e ordenamento da pessoa jurídica, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros.
Busca-se conciliar com tal premissa a preservação da pessoa jurídica frente a seus integrantes, em face da autonomia que dela emana, propiciando instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.
Porem, o que se observa hoje em dia é a utilização descontrolada e indiscriminada do instituto, seja da perspectiva do direito material, seja do direito processual, deixando no esquecimento instrumentos jurídicos já estabelecidos em leis que disciplinam as hipóteses e os requisitos para a excepcional responsabilização dos sócios e administradores.
A desconsideração da personalidade jurídica deve ser vista como aprimoramento, e não enfraquecimento, da pessoa jurídica e de sua autonomia patrimonial. No entanto, sua excepcional aplicação sem a presença de seus requisitos essenciais, em especial o abuso de direito e a fraude, somando-se ainda sua aplicação incorreta para hipóteses em que a lei já estabeleceu regras especificas de responsabilização direta dos sócios ou administradores, coloca em risco as bases norteadoras deste instituto, levando a ruína a sociedade empresarial.
Portanto, recomenda-se cautela para a aplicação do referido instituto, onde a interpretação do texto normativo deve definir os exatos limites da expressão “obstáculo para ressarcimento de prejuízos causados”, em proteção e coordenação com a regra da autonomia patrimonial entre pessoa natural e jurídica, prevista na legislação civil, devendo a desconsideração da personalidade jurídica não só coibir a fraude e o abuso de direito, mas também realizar a justiça, quando a personalidade da pessoa jurídica for utilizada de maneira despropositada, preservando-se a própria essência da pessoa jurídica.
Fonte: Almeida Advogados
– Karina Fortunato