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Artigos 16/11/2006

A Tributação de Investimentos Brasileiros no Exterior

O Banco Central divulgou recentemente dados[1] sobre investimentos brasileiros no exterior que reforçam uma tendência que já vinha sendo observada ao longo dos últimos anos. O ímpeto que resultou em aumento de 12,76% no volume de capitais brasileiros investidos no exterior em 2004, passando de US$ 82,692 bilhões para US$ 93,243 bilhões, continua sendo observado no primeiro semestre de 2006, quando o investimento direto brasileiro aumentou 153% na comparação com o mesmo período do ano anterior[2].

Este acentuado aumento nos investimentos diretos (só em 2004 cresceu US$ 14,304 bilhões) revela um fortalecimento da industria nacional e um aumento de sua inserção no mercado externo, em conseqüência dos diversos incentivos à exportação implantados ao longo dos últimos anos.

Por outro lado, estes dados revelam a negativa fuga de recursos para aporte em bens de capital, destinado ao setor produtivo e que passarão a gerar emprego, renda e arrecadação fora do território nacional. A combinação de uma carga tributária alarmante, um legislação trabalhista ultrapassada e uma política econômica e cambial monetarista, leva à inversão do papel que por décadas beneficiou o Brasil: o de atrair capital estrangeiro.

É justamente neste cenário que recentemente voltou à discussão no Supremo Tribunal Federal o embate entre fisco e contribuintes acerca da tributação de empresas sediadas no exterior, coligadas a empresas brasileiras ou controladas por estas.

A discussão ocorre no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria contra o dispositivo contido no art. 74 da Medida Provisória 2.158-35/2001, in verbis:

Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.

A intenção da medida é de considerar o lucro das empresas coligadas ou controladas por brasileiras no exterior automaticamente distribuídos a estas quando apurados em balanço. A edição de tal MP atendeu a solicitação da Receita Federal que via escapar da tributação o lucro apurado no exterior por empresas brasileiras, principalmente quando as operações envolviam holdings sediadas nos chamados paraísos fiscais, onde o acesso às informações contábeis pelo fisco brasileiro ficava sensivelmente prejudicada.

A União, que vem enfrentando recentes derrotas em importantes matérias discutidos no Supremo, tais como o alargamento da base de cálculo do PIS e da COFINS pela Lei 9.718/98 e da inclusão do ICMS na base de cálculo destas contribuições, agora terá de lidar com mais um revés que representará mais uma avalanche de ações de repetição de indébito.

Isto porque, inicialmente, o Supremo Tribunal Federal sinalizava uma vitória do Fisco. A Relatora, Ministra Ellen Gracie, entendeu pela inconstitucionalidade da norma às coligados, mantendo quanto às controladas. O Ministro Nelson Jobim, em voto vista, entendeu pela constitucionalidade da cobrança em ambas as hipóteses. Após longo interregno, em fins de setembro último o Ministro Marco Aurélio proferiu voto pela inconstitucionalidade em ambos os casos, sendo seguido pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Após o pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski, o julgamento foi novamente suspenso.

Antes de que seja enfrentada a questão, é necessário seja discutido o real conceito de renda para fins tributários, a teor do que admite a Constituição da República de 1988.

O Código Tributário Nacional traz o conceito de renda em seu artigo 43, onde fica evidenciada a necessidade de disponibilidade, seja econômica ou jurídica:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

A redação acima, original, em nada destoa do texto constitucional, havendo sido integralmente recepcionado pela Constituição, que em seu art. 153, III, cria a competência para a instituição da exação[3]. Contudo, em 2001, a Lei Complementar 104 incluiu os seguintes dispositivos no art. 43 do CTN;

§ 1o A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.

§ 2o Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo.

Ao que infere-se dos dispositivos acima, delegou-se ao legislador ordinário a prerrogativa de estabelecer o momento em que será considerada a disponibilidade, ou seja, o auferimento da renda. Foi sob a égide deste novo texto que a Medida Provisória foi editada. O questionamento que deve ser feito é acerca da possibilidade de o legislador criar uma ficção legal, tornando tributável renda ainda não disponibilizada, porquanto os lucros foram apurados mas não distribuídos.

Neste ponto é fundamental salientar que o Fisco pretende a aplicação desta ficção a empresas coligadas e controladas, sendo estas assim consideradas a teor do que versa o art. 243 da Lei 6.404/76:

Art. 243. O relatório anual da administração deve relacionar os investimentos da companhia em sociedades coligadas e controladas e mencionar as modificações ocorridas durante o exercício.

§ 1º São coligadas as sociedades quando uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.

§ 2º Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.

Tem-se duas situações distintas. Na primeira, a sociedade em que a brasileira meramente possui participação em seu capital, sem poderes administrativos, e sofrerá a tributação sem que possa influir na decisão de distribuir ou não os lucros apurados. Na segunda, a sociedade brasileira possui o controle, o que acarretaria na possibilidade de determinar a distribuição dos lucros auferidos.

A inconstitucionalidade da primeira hipótese, de aferição de lucros por empresa coligada, salta aos olhos. A empresa nacional não possui ingerência na estrangeira, estando, portanto, privada de poderes de definição da destinação de seus lucros, razão pela qual eventual tributação antes da efetiva disponibilização dos valores constituiria direta violação ao princípio da capacidade contributiva, posto que não estaria, com a simples apuração de lucros, provida dos meios para recolher o tributo devido.

Considerando a patente ausência de qualquer forma de disponibilização nesta hipótese a tendência (e os votos até o momento proferidos no julgamento apontam nesse sentido) é o da declaração da inconstitucionalidade da exigibilidade do crédito quando se tratar de lucro apurado por empresa coligada com sede no exterior.

O foco da disputa diz respeito aos casos em que a sociedade brasileira exerce controle administrativo sobre aquela sediada no estrangeiro. Haveria aí a permissividade de incidência do tributo? Seria esse o caso de disponibilidade jurídica a que se refere o art. 43 do CTN?

Análise mais detida é conducente à conclusão que o dispositivo, também com relação às controladas, é inconstitucional.

Em inúmeros julgados do STF seus Ministros trazem entendimento há muito exarado acerca da utilização de conceitos em direito tributário:

“…se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição.”

(voto do Min. Luiz Gallotti, RE 71.758 – RTJ 66 pg. 165, citado em julgados, dentre outros, RE 150764-PE e RE 116.221-SP)

O legislador ordinário – ou mesmo o complementar – não poderia definir como renda situação em que o contribuinte não adquire disponibilidade, tratando-se de ficção jurídica que não encontra abrigo sob o texto constitucional, porquanto significaria outorgar a incidência de imposto de renda sem que se haja auferido renda.

No caso concreto, a Medida Provisória considera a aferição de resultado positivo no exercício como disponibilidade do lucro. Ainda que em razão de seu controle a sociedade brasileira possa de fato determinar esta distribuição, a lei não pode generalizar quando as circunstâncias fáticas ocorridas sob a égide de legislações estrangeiras (muitas vezes com dispositivos similares aos da legislação nacional) podem trazer diversas implicações distintas ao mesmo fenômeno da apuração de lucros.

Considerar como obrigatória a distribuição de lucros quando a sociedade que obteve o resultado positivo possui uma série de opções quanto à sua destinação é tratar de modo igual situações sensivelmente diferentes.

A título de ilustração, apenas valendo-se de dispositivos contidos na Lei das Sociedades Anônimas, o lucro eventualmente apurado pode destinar-se à reserva legal, reserva estatutária, reserva contingencial e retenção, ou seja, sem embargo de disposições eventualmente existentes nas legislações de outros países, são inúmeras as possibilidades de aferição de lucro sem que resulte necessariamente em distribuição aos acionistas.

O próprio Supremo Tribunal Federal possui precedente em caso similar, ocorrido em julgamento acerca da inconstitucionalidade do Imposto sobre Lucro Líquido, cuja ementa ora se transcreve:

“(…)IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO NA FONTE – SÓCIO COTISTA. A norma insculpida no artigo 35 da Lei nº 7.713/88 mostra-se harmônica com a Constituição Federal quando o contrato social preve a disponibilidade econômica ou jurídica imediata, pelos sócios, do lucro líquido apurado, na data do encerramento do período-base. Nesse caso, o citado artigo exsurge como explicitação do fato gerador estabelecido no artigo 43 do Código Tributário Nacional, não cabendo dizer da disciplina, de tal elemento do tributo, via legislação ordinária. Interpretação da norma conforme o Texto Maior. IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO NA FONTE – ACIONISTA. O artigo 35 da Lei nº 7.713/88 e inconstitucional, ao revelar como fato gerador do imposto de renda na modalidade “desconto na fonte”, relativamente aos acionistas, a simples apuração, pela sociedade e na data do encerramento do período-base, do lucro líquido, já que o fenômeno não implica qualquer das espécies de disponibilidade versadas no artigo 43 do Código Tributário Nacional, isto diante da Lei nº 6.404/76.

(…)”

RE 172058 / SC – Rel. Min. Marco Aurélio – DJ 13-10-1995 Pg. 34282)

Ao que infere-se do julgado transcrito alhures, apenas pode ensejar a tributação os casos em que não cabe outra destinação ao lucro que não sua distribuição, restringindo-se a ingerência do sócio controlador ao momento de faze-lo.

Assim, mantido o direcionamento dos últimos votos proferidos pelo pleno do pretório excelso nos autos da ADI 2.588, mais uma justa vitória será obtida pelos contribuintes, diminuindo o poder de tributação da União sobre os crescentes investimentos estrangeiros promovidos por empresas nacionais.

 

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[1] Dados extraídos da declaração anual de capitais brasileiros no exterior.

[2] Revista CNI n. 67, setembro de 2006.

[3] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(…)

III – renda e proventos de qualquer natureza;

Fonte: Almeida Advogados
– Guilherme de Carvalho Doval

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