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Artigos 16/11/2006

A Representação da Pessoa Jurídica no Juizado Especial

A promulgação da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995) produziu grandes transformações no panorama processual brasileiro. São inegáveis os benefícios trazidos à população brasileira. Facilitou e muito, o acesso ao Poder Judiciário a toda população.

Desde sua origem, os Juizados mostraram que é fundamental e viável trabalhar com um novo modelo de Justiça, orientado pelos princípios da eficiência, da oralidade, da informalidade e da busca de solução de conflitos pela conciliação. Seu surgimento não significou a mera criação de novos órgãos judiciais, mas a consagração de uma nova cultura, de um novo modelo, que prioriza uma atuação dos órgãos jurisdicionais voltada estritamente para sua finalidade última e essencial: a superação de controvérsias.

Um dos aspectos mais interessantes relativos ao procedimento especial disciplinado pela Lei 9.099/95 diz respeito à necessidade do comparecimento pessoal das partes em litígio às audiências previstas em referida lei.

Em regra, as pessoas jurídicas são representadas em juízo por quem os respectivos estatutos designarem, ou, em não os designando, por seus diretores (artigo 12, VI, do Código de Processo Civil). O § 4º do artigo 9ª da Lei 9.099/95 seguindo a orientação antes traçada pela CLT (§ 1º do artigo 843), autoriza que o réu pessoa jurídica ou titular de firma individual se faça representar em audiência por preposto credenciado. Trata-se de regra que se contrapõe aos princípios gerais do procedimento ordinário regido pelo Código de Processo Civil (CPC), em que se dispensa a presença física das partes perante o Juízo, excetuando-se a hipótese do depoimento pessoal prestado em audiência de instrução.

A ausência das partes a qualquer uma das audiências previstas na Lei 9.099/95, traz sérias conseqüências aos litigantes, sendo que, para o autor, implica a extinção do feito (artigo 51, inciso I) e para o réu, a decretação dos efeitos da revelia (artigo 20).

Nos termos do artigo 12, inciso VI, do Código de Processo Civil, as pessoas jurídicas são representadas “por quem os respectivos estaturos designarem, ou, não designando, por seus diretores”. A Lei 9.099/95, em seu artigo 9º, permite que, em sede de Juizados Especiais Cíveis, a pessoa jurídica seja representada por um “preposto credenciado”.

Ocorre que muitos Juizados Especiais Cíveis têm exigido que este “preposto credenciado” do artigo 9º, § 4º, da Lei 9.099/95, seja um empregado da pessoa jurídica à qual representa, ou seja, que esta pessoa seja uma prestadora de “serviços de natureza não eventual ao empregador, sob a dependência deste e mediante salário”, nos termos do artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Essa exigência tem acarretado inúmeras decretações de revelia, especialmente aos réus de ações que versam sobre relações de consumo, geralmente fornecedores de produtos e serviços que atuam em todo território nacional. Isso porque, não raro, os grandes forncecedores de produtos e serviços designam como seus prepostos, geralmente nas audiências realizadas em comarcas distantes da sede das sociedades rés, pessoas que não guardam qualquer relação de emprego para com estas sociedades.

A exigência no sentido de que apenas o preposto possa representar a pessoa jurídica nos Juizados Especiais Cíveis, merece, no entanto, total reúdio por todos aqueles que defendem a correta aplicação da Lei do Juizado Especial.

A exigência de que o preposto seja empregado da pessoa jurídica não encontra qualquer respaldo na Lei 9.099/95, uma vez que esta exige apenas que a pessoa seja credenciada, bastanto, para tanto, apresentar a respectiva carta de preposição fornecida pela sociedade representada.

A própria Consolidação das Leis do Trabalho, de onde a representação de pessoas jurídicas por prepostos tem suas origens, não exige que a pessoa jurídica mantenha com o preposto que a representa em Juízo uma relação de emprego. Nesse sentido, exigir que o preposto seja empregado da pessoa jurídica contraria o princípio constitucional da legalidade, uma vez que não há qualquer diploma legal que legitime tal exigência.

Ressalte-se, ademais, que a Lei 9.099/95 tem como princípios informadores a simplicidade e informalidade (artigo 2º). Um dos corolários de referidos princípios encontra-se justamente no artigo 18, inciso II, de referida lei, que autoriza que a citação da pessoa jurídica seja efetuada na pessoa do “encarregado da recepção”.

Ora, se a própria Lei 9.099/95 permite que a citação, ato processual de fundamental importância, uma vez que inaugura a relação jurídico-processual, seja efetivada em pessoa que, muitas vezes, não guarda qualquer relação de emprego para com a pessoa jurídica a ser citada, não se pode admitir que esta mesma lei impeça que uma pessoa jurídica indique um não empregado para representá-la em Juízo.

Da mesma maneira, se uma pessoa jurídica pode indicar um terceiro não empregado para seus negócios gerais, responsabilizando-se pelos atos deste agente (artigo 43 do Código Civil), não há que se negar este mesmo direito para que esta indique terceiros não empregados para representá-la nos Juizados Especiais Cíveis.

Portanto, além de ilegal, a obrigatoriedade de presença de “preposto empregado” às audiência realizadas nos Juizados Especiais Cíveis contrapõe-se aos próprios princípios desta lei, quais sejam, o da simplicidade e informalidade.

Ressalte-se, ademais, que as ações envolvendo as chamadas relações de consumo são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.78/90), que, em seu artigo 101, inciso I, permite que referidas ações sejam propostas no domicílio do autor/consumidor. Percebe-se, portanto, que a exigência de comparecimento de um “preposto empregado” na ações envolvendo relações de consumo implicaria elevados custos aos réus de referidas ações, o que acabaria por praticamente inviabilizar a defesa destas pessoas jurídicas perante os Juizados Especiais Cíveis.

Isso porque, ao se admitir a regra de que o preposto deva ser empregado, os fornecedores de produtos e serviços com atuação nacional seriam obrigados despachar seus empregados para as mais remotas comarcas do Brasil, arcando com os vultosos custos de transporte, alimentação e estadia, a fim de que estes “prepostos empregados”, pudessem representá-los em causas que, muitas vezes, envolveriam apenas alguns poucos reais.

Note-se, outrossim, que ao se decretar a revelia de uma pessoa jurídica pelo simples fato de que o preposto devidamente credenciado não possui relação de emprego para com referida sociedade, estar-se-á impedindo, de maneira absolutamente arbitrária e ilegal, que as partes cheguem a uma composição amigável acerca da demanda.

Tal ocorre, pois a prática forense em ações nos Juizados Especiais Cíveis revela que o preposto credenciado, geralmente apresenta-se nas audiências munido de proposta de acordo proveniente da própria sociedade ré, proposta esta que sequer chegará a ser apresentada ao autor, diante da decretação da revelia por um magistrado que entenda que o preposto deva ser empregado da ré.

Dessa maneira, a exigência de que o preposto seja empregado da pessoa jurídica simplesmente menospreza outro princípio basilar previsto no artigo 2o da Lei 9.099/95, qual seja, o de que o processo por ela disciplinado buscará, “sempre que possível, a conciliação ou a transação”.

A exigência de que apenas o “preposto empregado” possa representar as pessoas jurídicas em Juízo deve ser veementemente rechaçada, sob pena de se inviabilizar a defesa dos fornecedores de produtos e serviços perante os Juizados Especiais Cíveis.

A Justiça se faz respeitar, e se legitima, se, simplesmente, funcionar, e, este funcionamento reside na eficiência em resolver conflitos, de maneira racional, célere e, fundamentalmente, democrática e acessível à população que deposita nela a expectativa final de superar os impasses naturais da vida em sociedade.

“A praxe, o ensino e a ciência não se limitam a procurar o sentido de uma regra e aplicá-lo ao fato provado; mas também, e principalmente, se esmeram em ampliar o pensamento contido em a norma à medida das necessidades da vida prática. Além do significado de uma frase jurídica, inquirem também do alcance da mesma.

Toda ciência legal é, conciente ou inconscientemente, criadora; em outras palavras, propende para o progresso da regra formulada até muito além do que a mesma em rigor estatui. Os próprios tradicionalistas irredutíveis atribuem ao juiz um poder natural que observe o preceito de Portalis, inserto no seu “Discurso Preliminar”, anexo ao Projeto de Código Civil Francês: Estenda os princípios dos textos às hipóteses particulares, por uma aplicação prudente e racionada; apodere-se dos interesse que a lei não satisfez, proteja-os e, por meio de tentativas contínuas, faça-os predominar”.

Não pode um povo imobilizar-se dentro de uma fórmula hierática por ele próprio promulgada; ela indicará de modo geral o caminho, a senda, a diretriz; valerá como um guia, jamais como um laço que prenda, um grilhão que encandeie. Dilata-se a regra severa, com imprimir elasticidade relativa por meio de interpretação.

Os juízes, oriundos do povo, devem ficar ao lado dele, e ter inteligência e coração atentos aos seus interesses e necessidades. A atividade dos pretórios não é meramente intelectual e abstrata; deve ter um cunho prático e humano; revelar a existência de bons sentimentos, tato, conhecimento exato das realidades duras da vida.

Em resumo: é o magistrado, em escala reduzida, um sociólogo em ação, um moralista em exercício; pois a ele incumbe observância das normas reguladoras da coexistência humana, prevenir e punir as transgressões das mesmas”.

São palavras de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1991) escritas no ano de 1924, antes mesmo do Supremo Tribunal Federal reconhecer a possibilidade de substituir-se a escrita manual pela máquina de datilografia. E, entretanto, essas lições não foram suficientes para extrair-se, dos Códigos de Processo, a rapidez e a celeridade, que são pressupostos de sua eficácia. Na verdade, a fidelidade aos Ilustres Processualistas do passado não está em preservar o acessório e o incidental em seu pensamento produzido em outra época e em diferente contexto – mas em pensar e criar como eles o faria, se vivessem nos dias de hoje.

Fonte: Almeida Advogados
– Valéria da Costa Vieira

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