post

Artigos 16/11/2006

AMICUS CURIAE no direito brasileiro

Amicus curiae, termo latino que significa “amigo da corte”, trata-se de uma pessoa, entidade ou órgão, com profundo interesse em uma determinada questão jurídica, na qual se envolve como um terceiro, que não os litigantes, movido por um interesse maior que o das partes envolvidas no processo. Tem como objetivo não favorecer uma das partes, mas dar suporte fático e jurídico à questão sub judice, enfatizando os efeitos dessa questão na sociedade, na economia, na indústria, no meio ambiente, ou em quaisquer outras áreas onde essa discussão possa causar influências.

O instituto se originou nas leis romanas, tendo sido plenamente desenvolvido na Inglaterra pela English Common Law e, atualmente, é aplicado com grande ênfase nos Estados Unidos. Seu papel é atuar como instrumento, servindo como fonte de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes da decisão dos juízes da corte. A função histórica do amicus curiae é chamar a atenção da corte para fatos ou circunstâncias que poderiam não ser notados.

A jurisdição e o processo constitucional brasileiro sofreram significativa modificação pelo advento do amicus curiae, que ocasionou um inédito alargamento da legitimidade para participar e interpretar a Constituição nos processos de controle concentrado de constitucionalidade que tramitam nos Tribunais de Justiça dos Estados e no Supremo Tribunal Federal.

A introdução da figura do Amicus Curiae, no sistema legal nacional, abriu espaço para as associações de magistrados, de advogados, de membros do Ministério Público, das entidades de movimentos sociais, comunidades étnicas e raciais, comunidades e entidades religiosas, ONGs, órgãos e entidades governamentais requererem ingresso nos processos em que se discute a constitucionalidade de leis e atos governamentais que ameacem ou violem os interesses e direitos coletivos dos grupos que representam, bem como os direitos difusos. Esses novos participantes do processo constitucional podem apresentar petições com documentos; pedidos de sustentação oral dos argumentos apresentados, podendo mesmo requerer a oitiva de testemunhas e de peritos, conforme o caso.

O instituto do amicus curiae se encontra previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde 1976. A Lei nº 6385/76, nos termos de seu art. 31, dispôs sobre a legitimidade de uma autarquia federal, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para interposição de recursos. No mesmo sentido, a Lei nº 8.884/94 previu a intervenção de autarquia federal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), para, se quiser, intervir como assistente, desde que intimado. A partir de 1999 o amicus curiae passou a ser discutido com maior ênfase, pois, a Lei 9.868/99 veio dispor sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Apesar de estar disposto no art. 7º da Lei nº 9.868 a inadmissibilidade da intervenção de terceiro, tal vedação sofre a exceção expressa no parágrafo 2º, no qual consagra a figura do amicus curiae, in verbis:

Art. 7º. (…)

Parágrafo 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

O Direito brasileiro, ao importar o instituto do Amicus Curiae, guardou algumas peculiaridades distintas das existentes nos Estados Unidos. Observa-se, por exemplo, na regra 37 (rule 37 – Brief for na Amicus Curiae) do Regimento Interno da Suprema Corte Norte Americana, que determina que, para admissão do Amicus Curiae, é necessário o consentimento das partes.

É verdade, porém, que a Suprema Corte pode admitir o Amicus Curiae, à luz do exame pedido e das razões de recusa. É importante, porém, frisar que se impõe a audiência prévia das partes, que a matéria seja de relevância e ainda não tenha sido ventilada pelas partes.

O direito brasileiro não guarda tal simetria, uma vez que a admissão da entidade ou órgão fica a critério exclusivo do relator.

Da leitura do art. 7º, parágrafo 2º da Lei 9.868/99 cumpre advertir que o legislador ordinário concedeu a legitimidade também a “outros órgãos ou entidades”, que deverão manifestar sobre seu interesse jurídico e não puramente econômico. A entidade é a associação de pessoas representando o interesse comum de determinada categoria com atividades profissionais idênticas.

Como se deduz do artigo supra citado, os requisitos para admissibilidade do amicus são: a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes. Do cumprimento desses requisitos, o relator admitirá o amicus curiae através da manifestação de entidades ou órgãos.

A relevância da matéria seria o nexo de importância do assunto debatido e a atividade exercida pela instituição, ou seja, quando a lei ou ato impugnado tiver interesse de acordo com a atividade desenvolvida. Por representatividade dos postulantes, o legislador ordinário quis enfatizar a necessidade de ser a entidade ou órgão representado por advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A fortiori, com a promulgação da CF/88, encontra-se positivado no art. 133 que o advogado é essencial à administração da Justiça e, além disso, a Lei 8.906, de 04 de julho de 1994, em seu art. 1º, inc. I disciplina que é atividade privativa da advocacia a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário. A representatividade é importante não só pela fundamentação legal e constitucional, mas para que o amicus curiae tenha a possibilidade de uma postulação técnica, exercendo sua manifestação de forma paritária com as demais partes durante o processo.

Tais requisitos necessitam estar claramente expostos, uma vez que à falta de um deles levará a inadmissibilidade do amicus curiae por despacho do qual não caiba qualquer recurso.

A admissibilidade do amicus curiae pelo relator pode se dar a qualquer momento antes do julgamento da lei ou ato normativo impugnado. Contudo, sua manifestação lhe será vedada nos atos já realizados, perfeitos e acabados, uma vez que receberá o processo no estado em que se encontra.

Cumpre trazer os casos em que os operadores do Direito poderão lançar mão do Amicus Curiae:

I – atos legislativos referentes a leis produzidas apenas pelo Poder Legislativo do Estado e que tramitem pelo devido processo legislativo, conforme artigo 59 da Constituição Federal;

II – medidas provisórias e atos administrativos-normativos que instituam direitos e obrigações, ameaçadoras de lesão ou violentadoras dos direitos humanos fundamentais: civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais, positivados e garantidos pela Constituição Federal ou pelas Estaduais, assim como pelos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos.

O memorial que deverá ser elaborado pelo amicus curiae será submetido ao relator em duas fases no processo: na primeira fase a entidade ou órgão deverá requerer a sua admissão no processo e na segunda fase, após sua admissão, apresentará suas razões. Na prática, o pedido de admissibilidade e as razões são interpostos em conjunto.

A rigor, a Lei 9.868/99 não dispõe expressamente sobre o prazo de manifestação do amicus curiae, mas, analogicamente, pode-se basear no parágrafo único do art. 6º, in verbis:

Art. 6º. (…)

Parágrafo único. As informações serão prestadas no prazo de trinta dias contado do recebimento do pedido.

A manifestação do amicus curiae se resumirá a uma coletânea de citações de casos relevantes para o julgamento, artigos produzidos por profissionais jurídicos, informações fáticas, experiências jurídicas, sociais, políticas, argumentos suplementares, pesquisa legal extensiva que contenham aparatos corroboradores para maior embasamento da decisão a ser proferida.

Se, diante de um debate sobre a inconstitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição da República, a decisão que vier a ser proferida for de relevante interesse para mais de uma entidade ou órgão, caberá a pluralidade de amicus curiae, sendo esta denominada de amici.

Disso resulta que, as diferentes entidades ou órgãos poderão trazer à colação aos autos suas manifestações de forma a pluralizar o debate constitucional, disponibilizando o máximo de elementos informativos possíveis e necessários à decisão final.

Podemos apontar como exemplos os requerimentos de Amicus Curiae formulados por entidades do movimento social negro em todas as ações que propuseram a declaração de inconstitucionalidade das leis estaduais que adotaram reserva de vagas para negros na UERJ e na UENF, visando a manutenção da vigência das mesmas.

A manifestação (memorial) apresentada perante o Supremo Tribunal Federal, de alguma forma inspirada nos amicus curiae brief apresentados no caso da Universidade de Michigan perante a Suprema Corte dos EUA, enfatizou uma redefinição dos conceitos jurídicos em face das modificações da realidade, ou seja, buscou produzir uma peça jurídica que primasse pela interdisciplinaridade das ciências sociais.

No Brasil, a complexidade das relações raciais, a especificidade da hermenêutica constitucional e a novidade do tema, ação afirmativa e seus mecanismos no país, requeriam uma argumentação diversa da visão tradicional do direito aplicado, ainda muito influenciado pelo positivismo e o formalismo. Isto é, sendo esse um caso difícil, a solução não adviria da simples subsunção dos fatos à norma jurídica.

O Supremo Tribunal não chegou a apreciar as alegações contidas na petição apresentada pelas entidades do movimento social negro, pois a ação foi extinta por falta de objeto. Contudo, a iniciativa surtiu efeito positivo, pois inspirou a Advocacia-Geral da União, que obrigatoriamente participa da ADI, a produzir um parecer inteiramente favorável às leis estaduais reputadas inconstitucionais.

Uma outra experiência exemplar de Amicus Curiae se deu no julgamento do habeas corpus – HC – no 82.424/RS, no Supremo Tribunal Federal, envolvendo crime de racismo e anti-semitismo, em que figurava como paciente o editor Siegfried Ellwanger e a autoridade co-autora o Superior Tribunal de Justiça. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal incorporando os argumentos contidos no parecer (admitido como Amicus Curiae) elaborado pelo professor Celso Lafer, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na sessão plenária realizada em 17 de setembro de 2003, decidiram, por maioria de sete votos a três, negar o remédio constitucional impetrado pelo citado editor. Esse caso foi talvez um dos mais emblemáticos, dentre todos aqueles já julgados pelo Supremo Tribunal Federal, desde a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, e servirá de paradigma para os futuros julgamentos de crimes de racismo no Brasil.

Apesar de o ponto central da discussão em plenário ter sido o alcance da expressão “racismo”, contida no inciso XLII do art. 5º, da Constituição (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”), o julgamento pelo STF foi muito mais além. Os fundamentos dos votos dos ministros superaram o conceito biológico de raça, para dar lugar ao pertencimento étnico-racial trazido pela antropologia, sociologia e de outras disciplinas das ciências sociais.

Outro caso de grande repercussão se deu na última eleição presidencial nos Estados Unidos. A disputa presidencial chegou à Suprema Corte sob a alegação de prática de fraude eleitoral perpetrada pelo então candidato George W. Bush, transformando-se no caso Florida Election Case nº 00.949. Na situação em tela, houve a admissão de nove Amicus Curiae, como, por exemplo, o Centro de Estudos da New York University, a Assembléia Legislativa da Flórida, o Estado do Alabama, e a American Bar Association – o equivalente à nossa Ordem dos Advogados. É importante, seja frisado, que o Candidato Al Gore, seguindo a tradição política estadunidense, não recorreu à justiça para anular o resultado das eleições. Ao final do processo, a Corte Suprema norte-americana deu o seu veredicto em favor de Bush.

Finalizando, o Amicus Curiae pode vir a ser um instrumento importante na luta dos grupos sociais para a incorporação, no mundo do Direito, das pessoas que representam, ou, ainda, para encontrar reconhecimento da sua identidade. Em sintonia com os ensinamentos de Milton Luiz Pereira, podemos dizer que o “Amigo da Corte”:

” é voluntário partícipe na construção de assentamentos judiciais para o ideal de pretendida “sociedade justa”, sem confundir-se com as hipóteses comuns de intervenção. Demais, não sofre a rejeição dos princípios básicos do sistema processual edificado. Desse modo, apenas com o propósito de avançar idéias sobre o tema e sem a presunção de abordoamento exaustivo, conclui-se que o amicus curiae, como terceiro especial ou de natureza excepcional, pode ser admitido no processo civil brasileiro para partilhar na construção de decisão judicial, contribuindo para ajustá-la os relevantes interesses sociais em conflito. A exposição de idéias é necessário tributo para as definições de uma ordem jurídica justa”.

Fonte: Almeida Advogados
– Fernanda Lima Batistella

VER TODOS OS ARTIGOS E NOTÍCIAS VER TODAS