A grande preocupação dos fundadores de empresas familiares no momento da sucessão de dirigentes é manter a sobrevivência da empresa. Para esta finalidade estratégias sistemáticas são necessárias a fim de operacionalizar as mudanças organizacionais.
Existem inúmeras formas de se realizar o planejamento sucessório das empresas familiares. O modelo proposto a ser estudado é a doação de quotas sociais com constituição de usufruto em favor do doador como meio de se iniciar o processo de migração do controle empresarial.
Planejar a sucessão de dirigentes da empresa demanda tempo e dedicação profunda de todos os envolvidos da família.
“A sucessão familiar é uma transferência de poder, geralmente conduzida em períodos de três a cinco anos, e preparada ao longo de uma geração”[1].
A continuidade das empresas familiares sempre foi um desafio. Em geral as empresas familiares por não serem bem planejadas não chegam sequer até a terceira geração. Preparar a família para entender quem será o herdeiro sucessor depende muitas vezes reconhecer que nem sempre os filhos ou parentes são as pessoas mais preparadas e competentes para assumir o cargo.
A precoce inserção nos filhos nas atividades empresariais tem se revelado forma eficaz para que os futuros herdeiros compreendam gradativamente o funcionamento e a importância da empresa para própria família.
Quando os filhos começam a participar da empresa desde cedo, os sucessores, durante o processo de sucessão, conseguem compreender com maior facilidade a missão da empresa dentro do mercado.
Uma abordagem curiosa que acontece na maioria dos processos sucessórios, está no fato de que muitas vezes, os futuros sucessores ao participar desde cedo da atividade da empresa, começam a vislumbrar inovações e modernas estratégias, idéias que em alguns casos colidem com os interesses dos fundadores, que esperam a migração do controle da empresa sem muitas mudanças drásticas.
Implantação de idéias inovadoras significa reconhecer que o modelo deixado pelo sucedido não mais atende às necessidades do mercado e, ainda, que o sucesso desta nova idéia dependerá da competência e preparação profissional do próprio sucessor. Eventual insucesso das mudanças significará a descontinuidade de toda uma história construída durante a vida do sucedido.
Para que não haja conflito de interesses familiares e da própria empresa é que se mostra necessário planejar o processo de sucessão. Muitos estudos apontam que a sucessão de dirigentes planejada estrategicamente, antecipa resultados positivos e aumenta as chances de sucesso das empresas familiares. A partir do momento em que o herdeiro está absolutamente envolvido com os negócios da empresa, o afastamento do sucedido se torna inevitável e natural.
A nosso ver, a doação de quotas sociais com constituição de usufruto em favor do doador como meio de se iniciar o processo de migração do controle empresarial pode ser uma forma eficaz de possibilitar uma transição mais segura.
Para melhor compreensão da estrutura proposta, faz-se necessário estudar os principais procedimentos legais a serem seguidos e as implicações advindas no caso do não atendimento das normas existentes. Inicialmente, cabe tecer algumas considerações a respeito do instituto da doação e do usufruto.
Segundo Orlando Gomes, doação é o “contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para patrimônio da outra, que se enriquece na medida em que aquela empobrece”[2].
Não há qualquer dúvida sobre a possibilidade de doação de quotas sociais, que dado o seu valor econômico, acrescerá o patrimônio do donatário gratuitamente.
A doação é a forma de transmissão das quotas sociais é estrategicamente escolhida, face às vantagens que possui em relação às demais formas, como a cessão onerosa, por exemplo.
O primeiro fator positivo consiste no fato de que a doação não demanda anuência dos demais herdeiros. Isto é, o fundador da empresa, detentor de grande parcela das quotas sociais, tem a possibilidade de optar, dentre os herdeiros, por aquele que possui melhores condições de assumir o papel de direção em detrimento dos outros e efetuar a doação das quotas, sem a necessidade de concordância formal dos demais herdeiros.
Dentro dos aspectos legais, a doação implica ainda a antecipação da legítima, que nada mais é do que a parte do patrimônio que constitui herança forçada dos herdeiros necessários, isto é, dos descendentes e, na falta deles, dos ascendentes, por força do disposto no artigo 1.846 do Código Civil.
Destaca-se ainda que o posterior falecimento do doador não altera a situação da doação nem mesmo com relação aos frutos dos bens doados que pertencem, exclusivamente, ao donatário, segundo entendimento dos ilustres doutrinadores Caio Mário da Silva Pereira[3] e Washington de Barros Monteiro[4]. O espólio, portanto, não possuirá qualquer direito ao uso e/ou à fruição do bem doado em vida.
É necessário, todavia, atentar que o doador não poderá doar à apenas um dos herdeiros necessários mais da metade de seu patrimônio, sob pena de tal doação ser considerada inoficiosa, na parte que ultrapassar a metade disponível.
O reconhecimento de excesso da doação, em regra, é analisado por meio de processo judicial em inventário, após a morte do doador, até porque seria um contra senso discutir redução de doação visando estabelecer divisão de herança de pessoa ainda viva. Este é o entendimento defendido por Carlos Maximiliano[5].
Contrariamente à posição acima, o próprio Superior Tribunal de Justiça[6] já se pronunciou no sentido de admitir válida ação de redução para discutir excesso de doação antes do falecimento do doador.
O posicionamento que aqui deve ser deixado é que a ação de redução não se mostra adequada para discutir herança de pessoa ainda viva, mesmo porque o reconhecimento de eventual excesso importaria dentro de um processo, admitir que a parte excedente retornaria ao patrimônio do doador, mesmo este figurando no pólo passivo da ação, considerando até mesmo a procedência da ação.
De qualquer modo, ajuizada a ação de redução, antes ou após o óbito do doador, deve-se observar apenas que o valor da doação deverá ser calculado com base no valor patrimonial da data da doação e não do falecimento.
Já a respeito o instituto do usufruto, é importante destacar que o proprietário de um bem “tem a faculdade de usar e fruir da coisa sob domínio e, querendo, pode transmitir, com a natureza de direito pessoal, o usar e o fruir para terceiro, com em um comodato, ou com a natureza de direito real. A existência de um bem, móvel ou imóvel, do qual se destacam, temporariamente, os direitos de usar e de fruir, para serem entregues a outrem, que se denominará de usufrutuário, permanecendo o que resta, a substância da coisa, com o proprietário, configura o direito real de usufruto”[7].
Analisados os conceitos acima, o que se propõe é uma operação que envolva a doação de quotas sociais de uma sociedade limitada, com a constituição de usufruto em favor do doador, como hipótese de manifestação de vontade de o doador transferir gratuitamente a propriedade das quotas ao donatário, permanecendo com o direito de usar e fruir das quotas, no prazo em que for convencionado ou durante o tempo em que o doador, usufrutuário permanecer vivo.
Nesta modalidade o doador continua com a posse e com a efetividade das quotas, permanecendo na condição de gestor dos negócios da empresa. Enquanto o doador estiver vivo, será como se nenhuma doação tivesse ocorrido, uma vez que o donatário ficará apenas com a propriedade nua das quotas, de modo que na hipótese do falecimento do doador, as quotas objeto do usufruto não integrarão o processo de inventário, bastando o registro do atestado de óbito na Junta Comercial com a alteração contratual.
Este tipo de sucessão é muito utilizado nos modelos de sociedade limitada. Importante observar que nas sociedades limitadas, a doação somente se concretiza se não houver oposição de titulares detentores de mais de um quarto do capital social.
Nesta última hipótese os sócios têm direito a veto, tendo em vista o ingresso de terceiro alheio ao quadro associativo. Entretanto, exercida esta faculdade serão obrigados a adquiri-la exercendo o direito de preferência. Não sendo manifestado o direito de preferência o sócio poderá dispor da quota como bem lhe convier, podendo transferi-la a terceiros.
Havendo a transferência mesmo com manifestação expressa de não concordância de sócio detentor de mais de um quarto do capital social, somente uma ação judicial poderá anular o ato da doação.
Esta é uma situação que em geral causa grande desgaste entre os sócios, colocando em risco a própria continuidade da empresa. Em todas as empresas, mas especialmente nas que envolvem sentimentos familiares, é preciso ter muita transparência para que os interesses pessoais familiares não se sobreponham aos interesses da própria sociedade.
Por outro lado, imaginando-se não haver discórdia na transferência de quotas, escolhido o sucessor dirigente e feito todo o planejamento patrimonial de herança aos demais herdeiros, por meio da doação de quotas com a constituição de usufruto em favor do doador é possível que o sucedido prepare o sucessor para assumir tal cargo com grande chance de sucesso.
Outra importante observação está no fato de que toda doação de quotas sociais com constituição de usufruto deve conter cláusula expressa do valor da doação, e a alteração contratual deve ser arquivada na própria Junta Comercial ou Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, para que tenha validade perante terceiros.
Na alteração contratual deverá constar ainda a condição de isento, se for o caso, ou na ocasião do valor da doação ser superior ao valor da isenção, deverá ser comprovado o recolhimento do ITCMD (Imposto sobre Transmissão por Doação ou Causa Mortis).
Importante observar, ainda, que a instituição do usufruto sobre quotas não retira do sócio seu direito de votar nas deliberações sociais, exceto se existir acordo entre o proprietário e o usufrutuário, cuja disposição deverá constar do instrumento de alteração contratual a ser também arquivada na Junta Comercial ou Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.
Qualquer alteração do contrato social deve ser arquivada na Junta Comercial ou Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, sob pena de não serem consideradas válidas perante terceiros.
O registro de faz necessário para dar publicidade ao próprio ato, de modo que sem o registro, o ato não pode ser considerado válido perante terceiros. Cabe ressaltar neste ponto, que em muitos casos a Junta Comercial não aceita alterações contratuais geralmente pela falta de observância dos aspectos formais da operação.
É importante ressalvar que se deve ter muito cuidado ao realizar a doação, pois, não é possível revogar unilateralmente a doação depois de aceita pelo donatário, que na qualidade de ato perfeito e acabado, não pode ser retratado ou revogado.
Conclusões
Portanto, o que se conclui é que inúmeros são os benefícios desta modalidade de planejamento sucessório, que ainda permite a transferência de bens sem a necessidade de processo judicial para partilha dos bens no caso de morte do sucedido. Pelo que foi estudado, no modelo proposto, por meio da aceitação da doação das quotas sociais da empresa familiar, invariavelmente o sucessor passa a se preparar para assumir o cargo de dirigente da empresa com maior seriedade e respeitabilidade perante os próprios funcionários da empresa.
Ao sucedido, a hipótese permite ainda que se tenha maior segurança em planejar o processo sucessório e evitar conflitos e interesses pessoais dos familiares.
——————————————————————————- – [1] TILLMANN, Cátia; Grzybovski. Sucessão de Dirigentes na Empresa Família: Estratégias Observadas na Família Empresária, O&S, v.12, n. 32, Janeiro-Março 2005.
[2] GOMES, Orlando. Contratos. 14ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 211.
[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. VI, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1991, p. 296/297.
[4] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 6º vol., Editora Saraiva, São Paulo, 1990, p. 314.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões, 5ª edição, vol. III, Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1964, p. 39.
[7] NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Direitos Reais Limitados. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 49.
Fonte: Almeida Advogados
– Ilka Suemi Nozawa