A aviação, após diversas alterações sofridas ao longo dos séculos, passou a ser um importante meio de transporte de passageiros e carga, veloz, eficiente, considerado nos dias de hoje o meio de transporte mais seguro de todos os existentes.
Diante deste imenso crescimento, restou imperiosa a necessidade de impor regras de responsabilidade para os transportadores e usuários, dentro dos padrões de segurança, eficiência e reconhecimento do direito de cada uma das partes.
Assim, foram criadas normas locais e convenções internacionais, a fim de disciplinar a responsabilidade civil no transporte aéreo. .
A Convenção de Varsóvia, com a emenda da Convenção de Haia em 1955, o Código Brasileiro de Aeronáutica, o Código Civil, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor, são normas aplicadas à responsabilidade civil no transporte aéreo, inclusive no que tange a reparação do dano que, nos dias de hoje, é evidenciado da forma mais ampla possível, de modo a abarcar não só os aspectos patrimoniais economicamente relevantes, como também aqueles que não evidenciam um reflexo patrimonial imediato. .
Conforme entendimento de Antunes Varela, “dano para o efeito da responsabilidade civil é toda lesão de um interesse de outrem, tutelado pela ordem jurídica, quer os interesses sejam de ordem patrimonial, quer sejam de caráter não patrimonial”. .
No presente caso, trataremos especificamente sobre responsabilidade civil no transporte aéreo decorrente de extravio de bagagem, cujo contrato embora tenha características próprias, submete-se ao contrato de transporte de passageiros, posto que não há bagagem sem que exista um titular beneficiário do transporte aéreo, o que de pronto, evidencia o seu caráter acessório. .
Quando se fala em responsabilidade civil por extravio de bagagem, o dano se configura pela perda de documentos, materiais pessoais, roupas, jóias dentre outros objetos integrantes do patrimônio do passageiro, e a obrigação quanto ao ressarcimento de tais prejuízos deverá ser analisada levando-se em consideração pontos que serão abaixo esclarecidos. .
A princípio, importante esclarecer que o contrato de transporte aéreo caracterizado como tipo geral, segundo Marcos Fábio Morsello “é o contrato por meio do qual um sujeito (transportador) se obriga, freqüentemente (embora não necessariamente), por meio de contraprestação pecuniária, a transferir pessoas ou coisas de um lugar para outro”. .
O artigo 222 do Código Brasileiro de Aeronáutica, define tal contrato como: “pelo contrato de transporte aéreo, obriga-se o empresário a transportar passageiro, bagagem, carga ou encomenda postal, por meio de aeronave, mediante pagamento”. .
Especificamente quanto ao transporte de bagagens, a sua importância é crescente, uma vez que, diante da operação de transporte aéreo, na proporção dos dias de hoje, a perda ou extravio das mesmas, diante da realidade de diversas conexões em vários vôos, até o local do destino, constituem, numericamente, a fonte de maior conflito de interesse em face do transportador. .
Eduardo T. Cosentino asserva que o contrato de transporte de bagagens é “aquele, em virtude do qual, uma das partes se obriga a transportar do ponto de partida ao de destino, conjuntamente com o passageiro, seus pertences pessoais, adequados para sua comodidade e uso, durante a viagem”. .
Luis Tapia Salinas define contrato de transporte de bagagem como aquele “mediante o qual uma empresa de transporte de aéreo ou simples transportador, se obriga, em virtude de um contrato de transporte de passageiro, firmado anterior ou simultaneamente com aquele, a trasladar de um lugar ao outro e por via aérea, a bagagem do passageiro referido, abarcando aquela despachada, bagagem de mão, bem como eventual excesso de peso, superador da franquia, nas condições pactuadas entre as partes”..
Com base em tais definições, chegamos a conclusão de que se trata de contrato além de acessório, bilateral, consensual, oneroso e de resultado..
Ainda dentro deste tema, a fim de se definir a busca da solução quanto aos ditames da responsabilidade civil sobre o extravio de bagagem, há a necessidade de se determinar qual a natureza do transporte aéreo, ou seja, se doméstico ou internacional. .
O transporte será considerado doméstico, conforme artigo 216 do Código Brasileiro de Aviação, se tiver origem e destino dentro de um mesmo país, independentemente de existirem eventuais escalas em outros países, estando subordinado ao Código Brasileiro de Aeronáutica, que em seu parágrafo 2º do artigo 1º da Lei 7.565/1996, prevê “Este Código se aplica a nacionais e estrangeiros, em todo território nacional, assim como no exterior, até onde for admitida a sua extraterritorialidade”. .
Já, se o transporte possuir ponto de origem e destino em paises distintos, será considerado transporte aéreo internacional, que é disciplinado por várias convenções, principalmente pela Convenção de Varsória, uma das mais importantes normas internacionais da aviação civil. .
Quanto a questão da responsabilidade civil em si, para fins de liquidação de eventual dano material fulcrado na destruição, perda ou avaria da bagagem, adotou-se o sistema de Varsóvia, absorvido em quase sua totalidade pelo Código Brasileiro de Aeronáutica. .
Tanto a Convenção de Varsórvia como o Código Brasileiro de Aeronáutica, traçam patamares de indenizações por destruição, perda ou avaria de bagagem despachada ou de mão, com algumas diferenciações entre ambas, limitando valores quanto aos danos materiais. .
Tal responsabilidade é tratada como limitada e objetiva, uma vez que entende-se que a bagagem é de responsabilidade da empresa de transporte aéreo e deve ser entregue ao passageiro no momento do desembarque. .
A responsabilidade objetiva neste caso, nada mais seria do que a obrigação de reparar danos causados a outrem, independentemente de qualquer conduta dolosa ou culposa do transportador, ocorridos durante atividades do seu interesse e controle, devendo, porém, serem levados em consideração três requisitos básicos, ou seja, o fato, o dano, bem como o nexo de causalidade. .
Esta questão ainda leva em consideração alguns direitos e obrigações entre as partes, como ressalta Luis Ivani Amorim de Araújo, onde cabe ao transportador “a expedição de nota de bagagem, em duas vias, com a indicação do lugar e data da emissão, pontos de partida e destino, números do respectivo bilhete de passagem, quantidade, peso e valor declarados dos volumes”, acrescentando-se ainda a entrega da bagagem no local de destino, intacta e sem retardamentos. Quanto ao passageiro, conforme Marcos Fábio Mosrello menciona em sua obra “Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo,” “impõe-se-lhe a entrega dos volumes, nas condições contratualmente estabelecidas, com o pagamento do valor eventualmente excedente, sem prejuízo do implemento das disposições administrativas e regulamentares que regem a relação contratual, inclusive no que concerne a conteúdo, dimensões e peso da bagagem de mão”. .
Nos dias de hoje, tais obrigações embora necessárias restam prejudicadas em parte, em razão do advento do bilhete eletrônico, na medida em que, conquanto acelere a operação econômica, reduzindo custos, torna restrito o lapso de tempo de recebimento de informação quanto à limitação da responsabilidade do transportador, na hipótese de perda, destruição ou avaria da bagagem, de modo a viabilizar esclarecimentos e reflexão quanto à utilidade da denominada declaração de valor..
O Código Brasileiro de Aeronáutica, em seu artigo 264, traça alguns pontos no que concerne ás excludentes deste dever de indenizar, como no caso de atraso causado por determinação expressa de autoridade aeronáutica do vôo, ou por fato cujos efeitos não era possível prever, evitar ou impedir, considerado como força maior, e ainda, quanto à perda, destruição ou avaria, estas resultarem exclusivamente de natureza ou vício próprio da mercadoria; quando se tratar de embalagem defeituosa da carga feita por pessoa ou seus prepostos ou quando tratar-se de ato de guerra, conflito armado e ato de autoridade pública. .
Ainda no que tange a indenização, embora tais diplomas tenham inserido a responsabilidade limitada do transportador, que se coaduna com o dano material, inexiste, com fulcro na força normativa da Constituição e na interpretação da lei conforme àquela, vedação de inclusão do dano moral no mesmo pedido de ressarcimento, o que vem acarretando no Brasil vultuosas indenizações aplicadas pelos Tribunais às empresas de transporte aéreo. .
Tal situação é ainda agravada pelo fato de existir uma divisão no entendimento quanto à aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica e o Código de Defesa do Consumidor, este último mais favorável ao usuário do que ao transportador, pois defende a inversão do ônus da prova e neste caso, a responsabilidade é tratada como ilimitada quanto ao valor da indenização, ao contrário do Código Brasileiro de Aeronáutica que prevê indenização tarifada. .
Esta divisão ocorre em razão de alguns julgadores entenderem que por se tratar o Código de Defesa do Consumidor de lei posterior ao Código Brasileiro de Aeronáutica, derrogaria este último. .
No entanto, quanto a tal entendimento, Luiz Camargo Pinto de Carvalho afirma que, por força do princípio da continuidade das leis corporificada no artigo 2º da lei de Introdução ao Código Civil, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. A lei posterior revoga a anterior mediante três hipóteses: quando expressamente o declare; quando seja com ela incompatível ou quando a regule inteiramente em relação á matéria tratada na lei anterior. .
Nesse sentido, Fábio Anderson de Freitas Pedro, em artigo publicado na revista Brasileira de Direito Aeroespacial, conclui que de imediato, deve-se por de lado a primeira e a terceira hipótese, uma vez que com relação à primeira, o Código de Defesa do Consumidor caiu na vala comum das “revogam-se as disposições em contrário”, e, evidentemente, com relação à terceira, como não cuidou do transporte aéreo, não regulou a matéria a ele referente. E ainda que, tampouco há que se aplicar a hipótese de possibilidade de existência de incompatibilidade entre os dois diplomas, pois apesar do Código de Defesa do Consumidor abordar genericamente os meios e caminhos de defesa do consumidor, não menciona montantes e valores indenizatórios, que serão estabelecidos caso a caso, com a aplicação dos princípios e normas que fazem parte do ordenamento jurídico, motivo pelo qual se deve concluir pela aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica. .
No mesmo artigo o autor traça algumas possibilidades a serem seguidas, e que podem acarretar melhores resultados quando se trata de quantificação da indenização, como a denunciação da Convenção de Varsóvia, sujeitando-se ás sanções internacionais, a propositura da revisão dos valores entabulados na Convenção de Varsóvia por meio de protocolo internacional e, por último, obedecer aos estritos termos a que se comprometeu tanto no momento da assinatura da Convenção quanto ao momento de sua ratificação. .
Resta claro que, diante da natureza do contrato de transporte aéreo em si, sendo ele de passageiro, carga ou bagagem, bem como as previsões legais para os casos de responsabilidade civil, o transportador será responsável pelos danos sofridos pelo usuário, com exceção das situações acima apontadas. .
Porém, não se pode deixar de lado a legislação criada para atender especificamente o campo do direito aeronáutico, aplicando-se ilimitadamente o Código de Defesa do Consumidor. .
Nesse sentido, a finalidade dos caminhos acima mencionados é trazer a tona os ditames da Convenção de Varsória, bem como do Código Brasileiro de Aeronáutica, posto que atualmente a jurisprudência vem seguindo a orientação de outorgar maior importância às normas da legislação consumerista do que ao disposto nas convenções das quais o Brasil é signatário, renunciando às normas que internacionalmente se comprometeu a atender.
Fonte: Almeida Advogados
– Kelly Cristina Schwartz