Autores:
Gustavo Henrique de Faria Passarelli – ghfaria@almeidalaw.com.br
Gisela Romancini Ribeiro – grribeiro@almeidalaw.com.br
Um dos princípios basilares do Direito do Consumidor é o reconhecimento de sua vulnerabilidade perante a figura do fornecedor, que se destaca na relação de consumo por ser parte economicamente melhor favorecida. Trata-se de princípio previsto expressamente no art. 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), pelo qual o consumidor é colocado sob proteção do Estado de forma a compensar sua posição desigual e equilibrar a relação de consumo.
É em razão da vulnerabilidade do consumidor que o legislador estabeleceu no art. 6º, VIII, do CDC, a inversão do ônus da prova em desfavor do fornecedor e, ainda, no art. 14, do mesmo Código, a responsabilidade objetiva do fornecedor quanto a qualquer dano causado ao consumidor pela sua prestação de seus serviços, independentemente de culpa.
Não obstante ser perfeitamente plausível o protecionismo do Estado para com o consumidor, justamente por ser evidente a sua posição desfavorável na relação de consumo, há que se reconhecer que nem sempre o consumidor possui razão ao pleitear seus direitos em juízo. Na verdade, são recorrentes os casos em que há o abuso da proteção que lhe é conferida pelo Estado para atingir objetivos antijurídicos ou contrários à boa-fé objetiva.
Um exemplo disso são as ações de cumprimento de obrigação de fazer ou ações indenizatórias pelas quais o consumidor, maliciosamente, alega não ter recebido produto adquirido em plataforma online porque este foi entregue a terceira pessoa, ainda que no endereço indicado no ato da compra.
Nesses casos, o consumidor, ciente de que a empresa comerciante não poderá provar que o terceiro que recebeu o produto o repassou ao comprador, pleiteia ilicitamente nova entrega do item e/ou indenização pelos danos supostamente causados, claramente visando o seu enriquecimento ilícito.
Fato é que em ações como essas, ao aplicar o princípio da vulnerabilidade e, consequentemente, o disposto nos artigos 6º, VIII e 14, do CDC, é comum entenderem os magistrados, equivocadamente, que o recibo de entrega do item no endereço indicado pelo consumidor, mas assinado por pessoa diversa, não faz prova de que o consumidor o recebeu.
Assim, ainda que a empresa tenha cumprido com sua obrigação de entregar o produto, é injustamente condenada pelo Poder Judiciário simplesmente porque não foi capaz de provar que o recebedor da mercadoria a repassou ao real comprador.
O posicionamento do Judiciário nesse sentido não possui nenhuma razoabilidade e merece notória reprovação, à medida que pune a parte passiva do feito não porque o autor logrou êxito em demonstrar seu direito, mas porque impôs ao fornecedor réu o ônus de uma prova impossível que, ao não ser apresentada nos autos, levou o juízo a presumir válidos os argumentos falsos apresentados pelo consumidor.
Ora, casos como esses precisam de uma análise mais cautelosa do Poder Judiciário, pois não é aceitável que se permita ao consumidor abusar da proteção que a Lei lhe dá para enriquecer ilicitamente.
Ainda que a responsabilidade do fornecedor seja objetiva e que a haja fundamento para a inversão do ônus da prova, devem os magistrados se atentar que tais pontos não podem implicar a produção de prova impossível ou excessivamente difícil para o fornecedor, visto que se trata de vedação imposta pelo art. 373, §2º, do Código de Processo Civil (CPC):
Art. 373,§ 2o , do CPC: A decisão prevista no § 1o deste artigo [decisão que inverte o ônus da prova] não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
Aliás, cabe esclarecer que a entrega de produtos adquiridos em plataforma online não é estritamente pessoal, podendo ser feita apenas ao comprador. Na verdade, qualquer pessoa que tenha autorização do destinatário, como um vizinho, familiar ou porteiro do endereço de entrega, pode receber a encomenda, justamente porque nem sempre é possível encontrar o comprador no endereço final.
É ato extremamente comum, por exemplo, o comprador solicitar a entrega do produto em sua residência, mas trabalhar em outro endereço durante o dia, de modo que para que a entrega seja realizada, outra pessoa que reside ou trabalha no endereço indicado receba o produto. Ora, nessa situação, se a empresa não entrega a encomenda à pessoa que ali estiver, evidente que jamais conseguirá realizá-la dentro do prazo estabelecido, pois não encontrará o comprador para fazê-lo.
Dessa forma, se o fornecedor cumpre com o seu dever de entregar o produto no endereço indicado no ato da compra, evidente que o fato de terceira pessoa assinar o recibo de entrega não pode configurar inadimplemento, pois é perfeitamente presumível que a encomenda foi repassada ao comprador.
Este, inclusive, é o posicionamento majoritário previsto nos enunciados n. 05 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE)[1]e n. 25 do Fórum de Juizados Especiais do Estado de São Paulo (FOJESP)[2], ao entender como válida a entrega de correspondência judicial no endereço da parte desde que identificado o seu recebedor, sendo que o mesmo entendimento pode ser utilizado para a entrega de produtos.
O escritório Almeida Advogados conta com equipe especializada em Direitos Civil e das Relações de Consumo, com ampla experiência na defesa dos interesses de seus clientes nas esferas judicial e administrativa, colocando-se à disposição para prestar todo e qualquer esclarecimento a respeito do tema abordado no presente artigo que se faça necessário.
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[1] ENUNCIADO n. 5, FONAJE – A correspondência ou contra-fé recebida no endereço da parte é eficaz para efeito de citação, desde que identificado o seu recebedor.
[2] ENUNCIADO n. 25, FOJESP – A correspondência ou contra-fé recebida no endereço da parte é eficaz para efeito de citação, desde que identificado o seu recebedor.